domingo, 5 de fevereiro de 2012

O direito e não o mercado.

Via Conteúdo Livre

Janaína Penalva - A venda de órgãos‏


O direito, e não o mercado, regula os transplantes no sistema de doações

Janaína Penalva


Doutora em direito constitucional, professora da Universidade de Brasília, pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis)

Ganhou repercussão a premiação de uma pesquisa realizada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que sustenta que um mercado lícito e regulado de órgãos e tecidos poderia ser uma alternativa eficiente ao modelo atual de doação de órgãos. Nas entrevistas publicadas (EM, Saúde, 30/1/2012), os autores dizem que a proibição do comércio de órgãos funda-se em uma visão moral de cunho religioso que sacraliza o corpo e desconsidera a autonomia dos indivíduos. Outro ponto levantado pelo estudo é que a regulação alteraria um cenário internacional preocupante de comércio ilegal de órgãos. Em síntese, trocaríamos um mercado negro por um mercado regulado, que, sensível à lei da oferta e da procura, aumentaria o número de órgãos e, portanto, de transplantes. O estudo se engana na definição das razões pelas quais nosso sistema rejeita o comércio de órgãos ou tecidos. Não vendemos órgãos porque rejeitamos o dinheiro como critério de justiça. O sistema de saúde brasileiro é público e universal. Isso significa que todos os brasileiros – ricos e pobres – têm exatamente os mesmos direitos frente ao Sistema Único de Saúde (SUS), garantidos na medida de suas necessidades médicas.



Quem regula os transplantes no sistema de doação é o direito e não o mercado. Um mercado lícito de órgãos pode ser uma proposta perversa, já que reduziria a escassez não apenas pelo eventual aumento no número de órgãos disponíveis para o transplante, mas, principalmente, pela redução no acesso, agora dependente do poder econômico do receptor. Novamente a ideia de escassez de bens é mal colocada no campo da saúde, um campo que deve ser regulado pelos direitos fundamentais e não pelas leis do mercado. Insistimos na gratuidade porque insistimos na universalidade do acesso à saúde. Os baixos índices de doação de órgãos podem ser alterados por políticas que criem um sistema integrado eficiente e transmitam confiança aos doadores. Essa confiança depende de uma regulação eficiente e de um esclarecimento público constante sobre como são feitos os transplantes e quais são os resultados para a saúde e vida dos receptores e doadores.


A doação intervivos é uma possibilidade segura para os doadores em alguns casos e deve ser incentivada e esclarecida. A Espanha é um país com índices altíssimos de transplante de órgãos e um exemplo interessante de que a garantia de universalidade em saúde pode ser realizada em um sistema público. Soluções intermediárias que garantissem que apenas os pobres tivessem acesso público aos transplantes nesse sugerido mercado lícito de órgãos é uma solução pior não apenas porque violaria a universalidade do SUS, mas por razões mais pragmáticas como a criação de duas filas de espera de órgãos e duas categorias de pacientes, os públicos e os privados. Além dos critérios de urgência e compatibilidade na definição dos transplantes, somaríamos o critério econômico e teríamos um sistema de saúde funcionando como um leilão de bens. Engana-se quem pensa que um mercado de órgãos é uma esperança. Como todas as sugestões de privatização da saúde, um mercado de órgãos é uma solução inconstitucional, além de ser um franco retrocesso no processo brasileiro de garantia dos direitos sociais.

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