domingo, 5 de fevereiro de 2012

"A expressão desenvolvimento sustentável representa uma armadilha do sistema imperante: assume os termos da ecologia (sustentabilidade) para esvaziá-los. Assume o ideal da economia (crescimento) mascarando, a pobreza que ele mesmo produz."

Do Portal Adital

Desenvolvimento sustentável: crítica ao modelo padrão 
Leonardo Boff
Teólogo, filósofo e escritor

Os documentos oficiais da ONU e também o atual borrador para a Rio+20 encamparam o modelo padrão de desenvolvimento sustentável: deve ser economicamente viável, socialmente justo e ambientalmente correto. É o famoso tripé chamado de Triple Botton Line (a linha das três pilastras), criado em 1990 pelo britânico John Elkington, fundador da ONG SustainAbility. Esse modelo não resiste a uma crítica séria.

Desenvolvimento economicamente viável: Na linguagem política dos governos e das empresas, desenvolvimento equivale ao Produto Interno Bruto (PIB). Ai da empresa e do país que não ostentem taxas positivas de crescimento anuais! Entram em crise ou em recessão com conseqüente diminuição do consumo e geração de desemprego: no mundo dos negócios, o negócio é ganhar dinheiro, com o menor investimento possível, com a máxima rentabilidade possível, com a concorrência mais forte possível e no menor tempo possível.

Quando falamos aqui de desenvolvimento não é qualquer um, mas o realmente existente que é aquele industrialista/capitalista/consumista. Este é antropocêntrico, contraditório e equivocado. Explico-me.

É antropocêntrico pois está centrado somente no ser humano, como se não existisse a comunidade de vida (flora e fauna e outros organismos vivos) que também precisa da biosfera e demanda igualmente sustentabilidade. É contraditório, pois, desenvolvimento e sustentabilidade obedecem a lógicas que se contrapõem. O desenvolvimento realmente existente é linear, crescente, explora a natureza e privilegia a acumulação privada. É a economia política de viés capitalista. A categoria sustentabilidade, ao contrário, provém das ciências da vida e da ecologia, cuja lógica é circular e includente. Representa a tendência dos ecossistemas ao equilíbrio dinâmico, à interdependência e à cooperação de todos com todos. Como se depreende: são lógicas que se autonegam: uma privilegia o indivíduo, a outra o coletivo, uma enfatiza a competição, a outra a cooperação, uma a evolução do mais apto, a outra a co-evolução de todos interconectados.

É equivocado, porque alega que a pobreza é causa da degradação ecológica. Portanto: quanto menos pobreza, mais desenvolvimento sustentável haveria e menos degradação, o que é equivocado. Analisando, porém, criticamente, as causas reais da pobreza e da degradação da natureza, vê-se que resultam, não exclusiva, mas principalmente, do tipo de desenvolvimento praticado. É ele que produz degradação, pois dilapida a natureza, paga baixos salários e gera assim pobreza.

A expressão desenvolvimento sustentável representa uma armadilha do sistema imperante: assume os termos da ecologia (sustentabilidade) para esvaziá-los. Assume o ideal da economia (crescimento) mascarando, a pobreza que ele mesmo produz.

Socialmente justo: se há uma coisa que o atual desenvolvimento industrial/capitalista não pode dizer de si mesmo é que seja socialmente justo. Se assim fosse não haveria 1,4 bilhões de famintos no mundo e a maioria das nações na pobreza. Fiquemos apenas com o caso do Brasil. O Atlas Social do Brasil de 2010 (IPEA) refere que cinco mil famílias controlam 46% do PIB. O governo repassa anualmente 125 bilhões de reais ao sistema financeiro para pagar com juros os empréstimos feitos e aplica apenas 40 bilhões para os programas sociais que beneficiam as grandes maiorias pobres Tudo isso denuncia a falsidade da retórica de um desenvolvimento socialmente justo, impossível dentro do atual paradigma econômico.

Ambientalmente correto: O atual tipo de desenvolvimento se faz movendo uma guerra irrefreável contra Gaia, arrancando dela tudo o que lhe for útil e objeto de lucro, especialmente, para aquelas minorias que controlam o processo. Em menos de quarenta anos, segundo o Índice Planeta Vivo da ONU (2010) a biodiversidade global sofreu uma queda de 30%. Apenas de 1998 para cá houve um salto de 35% nas emissões de gases de efeito estufa. Ao invés de falarmos nos limites do crescimento melhor faríamos falar nos limites da agressão à Terra.

Em conclusão, o modelo padrão de desenvolvimento que se quer sustentável, é retórico. Aqui e acolá se verificam avanços na produção de baixo carbono, na utilização de energias alternativas, no reflorestamento de regiões degradadas e na criação de melhores sumidouros de dejetos. Mas reparemos bem: tudo é realizado desde que não se afetem os lucros, nem se enfraqueça a competição. Aqui a utilização da expressão "desenvolvimento sustentável”possui uma significação política importante: representa uma maneira hábil de desviar a atenção para a mudança necessária de paradigma econômico se quisermos uma real sustentabilidade. Dentro do atual, a sustentabilidade é ou localizada ou inexistente.



O direito e não o mercado.

Via Conteúdo Livre

Janaína Penalva - A venda de órgãos‏


O direito, e não o mercado, regula os transplantes no sistema de doações

Janaína Penalva


Doutora em direito constitucional, professora da Universidade de Brasília, pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis)

Ganhou repercussão a premiação de uma pesquisa realizada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que sustenta que um mercado lícito e regulado de órgãos e tecidos poderia ser uma alternativa eficiente ao modelo atual de doação de órgãos. Nas entrevistas publicadas (EM, Saúde, 30/1/2012), os autores dizem que a proibição do comércio de órgãos funda-se em uma visão moral de cunho religioso que sacraliza o corpo e desconsidera a autonomia dos indivíduos. Outro ponto levantado pelo estudo é que a regulação alteraria um cenário internacional preocupante de comércio ilegal de órgãos. Em síntese, trocaríamos um mercado negro por um mercado regulado, que, sensível à lei da oferta e da procura, aumentaria o número de órgãos e, portanto, de transplantes. O estudo se engana na definição das razões pelas quais nosso sistema rejeita o comércio de órgãos ou tecidos. Não vendemos órgãos porque rejeitamos o dinheiro como critério de justiça. O sistema de saúde brasileiro é público e universal. Isso significa que todos os brasileiros – ricos e pobres – têm exatamente os mesmos direitos frente ao Sistema Único de Saúde (SUS), garantidos na medida de suas necessidades médicas.



Quem regula os transplantes no sistema de doação é o direito e não o mercado. Um mercado lícito de órgãos pode ser uma proposta perversa, já que reduziria a escassez não apenas pelo eventual aumento no número de órgãos disponíveis para o transplante, mas, principalmente, pela redução no acesso, agora dependente do poder econômico do receptor. Novamente a ideia de escassez de bens é mal colocada no campo da saúde, um campo que deve ser regulado pelos direitos fundamentais e não pelas leis do mercado. Insistimos na gratuidade porque insistimos na universalidade do acesso à saúde. Os baixos índices de doação de órgãos podem ser alterados por políticas que criem um sistema integrado eficiente e transmitam confiança aos doadores. Essa confiança depende de uma regulação eficiente e de um esclarecimento público constante sobre como são feitos os transplantes e quais são os resultados para a saúde e vida dos receptores e doadores.


A doação intervivos é uma possibilidade segura para os doadores em alguns casos e deve ser incentivada e esclarecida. A Espanha é um país com índices altíssimos de transplante de órgãos e um exemplo interessante de que a garantia de universalidade em saúde pode ser realizada em um sistema público. Soluções intermediárias que garantissem que apenas os pobres tivessem acesso público aos transplantes nesse sugerido mercado lícito de órgãos é uma solução pior não apenas porque violaria a universalidade do SUS, mas por razões mais pragmáticas como a criação de duas filas de espera de órgãos e duas categorias de pacientes, os públicos e os privados. Além dos critérios de urgência e compatibilidade na definição dos transplantes, somaríamos o critério econômico e teríamos um sistema de saúde funcionando como um leilão de bens. Engana-se quem pensa que um mercado de órgãos é uma esperança. Como todas as sugestões de privatização da saúde, um mercado de órgãos é uma solução inconstitucional, além de ser um franco retrocesso no processo brasileiro de garantia dos direitos sociais.